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segunda-feira, 22 de abril de 2019

Aplicação do dinheiro arrecadado com multas de trânsito


Qualquer pessoa que trabalha, há algum tempo, na área sabe que o dinheiro arrecadado com as multas de trânsito tem destino certo (apesar de, muitas vezes – e infelizmente – a regra não ser cumprida à risca). Os motoristas, em geral, desconhecem este fato na sua plenitude, mas alguns até já ouviram dizer que 5% da arrecadação deve ser aplicada, exclusivamente, em investimentos para melhoria da segurança viária. Na verdade, não são apenas estes 5%, sobre os quais vez ou outra se fala a respeito, mas absolutamente TODA a receita arrecadada, conforme se verá a seguir. Inicialmente, há que se destacar que a multa de trânsito NÃO é a finalidade primordial de nenhum órgão ou entidade integrante do Sistema Nacional de Trânsito (ou, pelo menos, não deveria ser), mas se trata da resultante de um comportamento infracional que, justamente, os órgãos fiscalizadores buscam PREVENIR, COIBIR e, quando de sua ocorrência, REPRIMIR.

É notório que toda ocorrência de trânsito é antecedida por uma desobediência à legislação de trânsito; assim, quando se procura proteger a vida, evitando-se mortes e ferimentos decorrentes das colisões e atropelamentos, deve-se buscar, acima de tudo, EVITAR que a infração de trânsito aconteça e, consequentemente, que a multa tenha que ser aplicada. Vivemos, entretanto, um círculo vicioso, pois o Poder público, de forma geral, programa-se, antecipadamente, para o recebimento de valores decorrentes da imposição das penalidades de trânsito, até mesmo prevendo onde vai gastar a receita arrecadada (ocasionalmente de forma imprópria e ilegal), ou seja, o Sistema de trânsito, que deveria EVITAR a multa, acaba dependendo dela para sua subsistência; ora, o que ocorreria se TODOS OS USUÁRIOS das vias públicas decidissem, repentinamente, seguir a legislação de trânsito e não cometessem mais nenhuma infração de trânsito? Até que ponto, o órgão ou entidade de trânsito pode depender da ARRECADAÇÃO de multas para continuar funcionando, para manter a sua estrutura? Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo, com uma frota registrada de 7.805.127 veículos e uma população estimada de 12.106.920 pessoas 1, a arrecadação de multas de trânsito no ano de 2016 foi de mais de um bilhão e meio de reais (exatos R$ 1.531.195.168,76), superando em quase meio bilhão a previsão orçamentária inicial (que era de R$ 1.110.194.392,00) 2 - apesar de ser um valor astronômico, vale destacar que esta fonte representa “apenas” 3,22% da arrecadação da maior Prefeitura do Brasil, que, em 2016, foi de mais de 47 bilhões e meio de reais. Em outras palavras, é como se, proporcionalmente, a Prefeitura já esperasse que cada proprietário de veículo registrado na Capital (sem contar a frota circulante), desembolsasse R$ 142,23 em multas de trânsito, o que significa, praticamente, cada um ter cometido uma infração de natureza grave (cujo valor, com desconto até o vencimento, é de R$ 156,18). A previsão ainda foi aquém do realmente ocorrido, tendo em vista que, no final, foi como se cada dono de veículo paulistano pagasse R$ 196,17 à Administração.


2 Comparativo da receita orçada com a arrecadada, da Prefeitura do Município de São Paulo, disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/16-Consolidado-2016-Anexo10-CompRecOrcArrec_1490361401.pdf Diante desta constatação, as reflexões que nos restam são: “e se nenhum veículo fosse multado?” ou “e se as ações de educação e fiscalização PREVENTIVA fossem tão eficazes, a ponto de evitar todas as infrações de trânsito ESPERADAS?” Apesar de QUERERMOS um trânsito mais seguro (e ser este o OBJETIVO PRINCIPAL das ações dos órgãos de trânsito), a constatação prática é que a Administração Pública já conta com a arrecadação de multas, antes mesmo das infrações acontecerem, ao ponto até de, na atual gestão paulistana, estar sendo apresentado um modelo inédito de captação de investimentos, na ordem de R$ 400 milhões, por meio da antecipação de valores recebíveis das multas de trânsito, para 2018. 

3 Faço este preâmbulo exatamente para demonstrar o motivo pelo qual a arrecadação das multas de trânsito tem destino fixado: sua utilização deve ser exclusiva para despesas que representem INVESTIMENTOS para a melhoria da SEGURANÇA VIÁRIA, de tal modo que, uma vez não existindo mais infrações (ainda que seja utópico, estamos a tratar do campo IDEAL) e, consequentemente, multas de trânsito, não haja ruptura do funcionamento das estruturas administrativas, além de representar a conquista dos objetivos almejados. Por certo, menos multas significam, em tese, menos ocorrências de trânsito, menos mortos e feridos, menos gastos com saúde e demais áreas afetadas pela mortalidade viária. Por este motivo, o artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro estabelece que “a receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito”, ações estas que são devidamente delineadas na norma complementar que regulamenta o tema (Resolução do Conselho Nacional de Trânsito n.638/16, com alteração da n. 660/17) 

4. O que costuma transmitir a falsa ideia de que 5% das multas de trânsito devem ser aplicados na melhoria do trânsito é o disposto no § 1º deste artigo (renumerado pela Lei n. 13.281/16), segundo o qual “o percentual de cinco por cento do valor das multas de trânsito arrecadadas será depositado, mensalmente, na conta de fundo de âmbito nacional destinado à segurança e educação de trânsito”; como se vê, todavia, TODA A ARRECADAÇÃO deve ser usada no trânsito, sendo que 95% pelo próprio órgão arrecadador e 5% pelo Departamento Nacional de Trânsito, responsável pela gestão do fundo nacional citado pelo parágrafo transcrito e criado pela Lei n. 9.602/98 (1ª lei a alterar o CTB) e Decreto n. 2.613/98, denominado FUNSET – Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito. O FUNSET tem como principais fontes de arrecadação, previstas no próprio CTB, os 5% das multas aplicadas em todo o país e 5% do valor arrecadado pelo Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Via Terrestre – DPVAT, pois metade do DPVAT é destinada à seguridade social 

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4 A Resolução n. 638/16 revogou a anterior, de n. 191/06, a qual era complementada pela Portaria do Departamento Nacional de Trânsito n. 407/11 – Cartilha de Aplicação de Recursos Arrecadados com a Cobrança de Multas de Trânsito – igualmente revogada, pela Portaria n. 239/16.
5 Lei n. 8.212/91 (Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências) - artigo 27, parágrafo único. “As companhias seguradoras que mantêm o seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de vias terrestres, de que trata a Lei nº 6.194, de dezembro de 1974, deverão repassar à Seguridade Social 50% (cinquenta por cento) do valor total do prêmio recolhido e destinado ao Sistema Único de Saúde-SUS, para custeio da assistência médico-hospitalar dos segurados vitimados em acidentes de trânsito”. e, desta metade, 10% são remetidos para o DENATRAN, conforme o parágrafo único do artigo 78 do CTB 6 (o artigo 3º do Decreto n. 2.613/98 cita, ainda, outros recursos) – em 1998, primeiro ano de sua criação, a arrecadação do FUNSET foi de quatro milhões de reais (R$ 4.609.341,34); dezoito anos depois, em 2016, foi de quase cem vezes mais (R$ 442.695.492,72) 7, sendo a maior parte decorrente de multas de trânsito (a parcela do DPVAT representou menos de 0,1% disso, segundo informações da Seguradora Líder, administradora do seguro obrigatório – em 2016, exatos R$ 434.730,00). 8 Façamos uma conta simples: se retirarmos o repasse do DPVAT e desconsiderando outras fontes de receita (menos significativas), imaginando que os R$ 442.260.762,72 restantes, do arrecadado pelo FUNSET em 2016, sejam equivalentes a 5% das multas de trânsito de todo o país, quer dizer que o TOTAL ARRECADADO pela fiscalização de trânsito, na União, Estados, Distrito Federal e Municípios atingiu a marca, EM UM ANO, de R$ 8.845.215.254,40. ISTO MESMO: QUASE 9 BILHÕES DE REAIS que DEVERIAM ser utilizados para redução de mortes no trânsito (será que foi isto que ocorreu?) Um registro importante é que, além do aumento dos valores das multas (ocorrido no final de 2016, é bem verdade), da crescente integração dos municípios ao Sistema Nacional de Trânsito e da ampliação da fiscalização de trânsito (em especial, por equipamentos eletrônicos), este crescimento exponencial do repasse ao FUNSET também se deu pela adoção de critérios, pela coordenação do SNT, para controlar, de forma mais efetiva, a arrecadação e a RETENÇÃO LEGAL do percentual pertencente ao Fundo nacional (o montante tende a aumentar ainda mais, por conta da mais recente norma a este respeito, a Resolução do CONTRAN n. 637/16, que reorganizou o RENAINF – Registro Nacional de Infrações de Trânsito, para deixar de ser uma sistemática adotada somente para as multas a veículos de outros Estados e constituir uma base nacional obrigatória para TODAS as infrações de trânsito). O fato é que, como visto, tanto o dinheiro do FUNSET quanto a arrecadação que permanece com o órgão ou entidade aplicador da multa de trânsito devem ser diligentemente direcionados para as ações específicas delimitadas pela legislação de trânsito; qualquer uso deste dinheiro “carimbado” fora das situações elencadas é ilegal e está passível de questionamento, em especial quanto à eventual improbidade administrativa, nos termos da Lei n. 8.429/92. Foi o que aconteceu, por exemplo, em São Paulo, onde o Ministério Público ingressou com ação civil pública contra a gestão do Prefeito Fernando Haddad, no final de 2015, questionando aplicação irregular do dinheiro arrecadado com multas de trânsito, dando destaque para a construção de terminais de ônibus e ciclofaixas e, ainda, pagamento dos funcionários da Companhia de Engenharia de Tráfego. Na decisão de 1ª instância, o Juiz de Direito Dr. Luis Felipe Ferrari Bedendi entendeu pela regularidade do uso em relação aos terminais e ciclofaixas, pois “se devidamente fundamentado o projeto [baseado em estudos], há de se considerar que a construção de terminais de ônibus e vias cicláveis

O percentual de dez por cento do total dos valores arrecadados destinados à Previdência Social, do Prêmio do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Via Terrestre - DPVAT, de que trata Lei nº 6.194, de 19 de dezembro de 1974, serão repassados mensalmente ao Coordenador do Sistema Nacional de Trânsito para aplicação exclusiva em programas de que trata este artigo.


8 Relatório da Administração do DPVAT, exercício 2016, disponível em https://www.seguradoralider.com.br/Documents/demonstracoes-financeiras/Exercicio-2016.pdf destinam-se à ampliação das condições de fluidez e segurança no trânsito” (destaca-se que a atual Resolução do CONTRAN – 638/16 – passou a prever, EXPRESSAMENTE, a regularidade nestas situações – artigos 6º, XIV, e 8º, XII, o que antes não constava taxativamente da Resolução n. 191/06, facilitando, doravante, os argumentos recursais da municipalidade), mas concluiu pela ILEGALIDADE do pagamento de funcionários da CET/SP, reiterando que “a manutenção da estrutura administrativa da CET não se constitui em investimento, não podendo, por conseguinte, ser bancada pelo dinheiro arrecadado de multas de trânsito”. 

9 Diante deste quadro, a Prefeitura de SP recorreu e conseguiu manter, para 2016, autorização judicial para pagamento dos funcionários da CET, tendo de pleitear, novamente, a mesma interpretação para este ano de 2017, o que foi inicialmente negado, mas posteriormente concedido pela Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministra Laurita Vaz, em 30/06/17, a qual permitiu que, até trânsito em julgado da ação civil pública, o Município de São Paulo continue utilizando dinheiro do FMDT – Fundo Municipal de Desenvolvimento do Trânsito, para pagamento de funcionários da CET, além de construção de terminais de ônibus e ciclovias/ciclofaixas (Agravo Interno na Suspensão de Liminar e de Sentença n. 2.193-SP). 

10 Como se vê, não obstante a LETRA DA LEI, há precedentes judiciais permissivos à utilização desta receita com outras despesas e, inclusive, a sua não utilização, como ocorreu na situação emblemática, que continua tramitando no Judiciário, referente ao contingenciamento dos valores do FUNSET (“congelamento” do dinheiro, sem utilização para os fins a que se destina), o que também já foi alvo de questionamento pelo Ministério Público Federal, inicialmente com decisão que lhe foi positiva, mas rapidamente suspensa - no dia 13/10/09, publicou-se decisão do Ministro Cesar Asfor Rocha, do Superior Tribunal de Justiça, deferindo o pedido da União para SUSPENDER a execução da sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública n.2005.61.11.003868-9, da 1ª Vara Federal da 11ª Subseção Judiciária de Marília, a qual determinava tão somente o cumprimento da lei (artigos 78 e 320 do CTB): que o Governo Federal utilize os recursos provenientes de multa e do seguro obrigatório – DPVAT, em programas de prevenção e projetos de educação e segurança no trânsito, que, NA ÉPOCA, totalizavam R$ 1.650.000.000,00 (um bilhão e seiscentos e cinquenta milhões de reais, que estavam – e ainda estão – PARADOS na conta, com o aval do Judiciário).A alegação da União, reconhecida pelo STJ, é a de que a sentença de primeira instância acarretou grave lesão à ordem e à economia públicas, na medida em que a decisão privilegiou as normas contidas no Código de Trânsito em detrimento do “nefasto impacto da decisão nas contas públicas” (o Ministério Público Federal recorreu mas o agravo regimental foi indeferido em 10/09/10, pelo Ministro Presidente do STJ e a ação aguarda final julgamento). 

11 Da análise do STJ, no presente caso, destaco as seguintes explicações:

 
Seguindo essa linha de raciocínio, com toda a certeza, o controle da economia na atualidade será positivo para o futuro da saúde e da segurança públicas e para os demais investimentos sociais e em infraestrutura, devendo-se preservar, com responsabilidade e diante do contexto econômico vigente, a possibilidade de bloqueio de determinadas despesas, e em determinados valores, pela União com o propósito de evitar danos futuros à economia, à saúde pública, às políticas sociais, ao crescimento e ao desenvolvimento do País. Ademais, as campanhas de educação no trânsito não estão suspensas. Mesmo em volume inferior ao que se poderia eventualmente dispor, os gastos com propagandas educativas em jornais, televisões e placas nas ruas continuam, além da fiscalização efetuada diretamente pelos agentes públicos. Por último, a União bem lembrou em sua inicial que não haverá prejuízo irreparável ao DENATRAN, destinatário legal dos recursos, pois o contingenciamento não desfaz a vinculação da receita para o órgão, podendo, no futuro, ser utilizada nos projetos definidos na lei" (fl. 5).

 Além das “concessões judiciais”, destaca-se outra mudança recente na norma CONSTITUCIONAL que passou a permitir a DESVINCULAÇÃO da receita com destino certo: o Congresso Nacional aprovou, no final de 2016, mais uma prorrogação da DRU – Desvinculação de Receitas da União (mecanismo que permite o governo federal usar livremente um percentual das receitas arrecadadas, prevista no Ato das Disposições Constitucionais TRANSITÓRIAS e que vem sendo, sistematicamente, alvo de prorrogação, desde sua criação em 2000) e ESTENDEU a mesma Desvinculação de Receitas para os Estados, Distrito Federal e Municípios, permitindo o uso LIVRE, até 31/12/23, de 30% DAS RECEITAS relativas a impostos, taxas e MULTAS (artigos 76-A e 76-B do ADCT da CF/88, incluídos pela EC n. 93/16). Verificamos, desta forma, que, apesar da previsão legal que obriga a aplicação da arrecadação com multas de trânsito para incremento da segurança viária, existem diversas ressalvas e artifícios que nos apresentam um quadro diferente do ideal. Por fim, destaca-se que a Lei n. 13.281/16 incluiu um § 2º ao artigo 320, determinando que “o órgão responsável deverá publicar, anualmente, na rede mundial de computadores (internet), dados sobre a receita arrecadada com a cobrança de multas de trânsito e sua destinação” 

12. A partir de agora, teremos, pelo menos, maior TRANSPARÊNCIA na aplicação deste dinheiro. Vamos acompanhar!

POR: JULYVER MODESTO DE ARAUJO

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