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domingo, 24 de agosto de 2014

Emenda Constitucional nº 82/14, e Suas Inovações



Art. 7º - Emenda Constitucional dos Agentes de Trânsito, por Julyver Modesto de Araujo.

    Em 17 de julho de 2014, foi publicada, no Diário Oficial da União, a Emenda Constitucional nº 82/14, a qual tem sido chamada, por alguns, de Emenda dos Agentes de trânsito, ou Emenda da Mobilidade urbana, e incluiu o § 10 no artigo 144 da Constituição Federal (que versa sobre a Segurança Pública), com o seguinte texto:

§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:

I – compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e
II – compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.

    A Proposta de Emenda Constitucional que lhe deu origem foi apresentada, inicialmente, em 2011, pelo Deputado Federal Hugo Motta, com o número PEC 55/11, renumerada para PEC 77/13, quando de sua tramitação pelo Senado.
   
No texto original, pretendia-se alterar o § 8º do artigo 144, ampliando a atuação das Guardas Municipais, e incluindo a possibilidade de constituição, pelos Municípios, de órgãos incumbidos da “fiscalização e controle de operações de trânsito”, reconhecendo-se as competências que o atual Código de Trânsito Brasileiro já estabeleceu à municipalidade, no que se convencionou chamar de “municipalização do trânsito”; ao final, no texto aprovado, optou-se por inserir parágrafo diverso ao artigo 144, independente das funções das GMs, e tratando do tema tanto no âmbito estadual quanto municipal.

    Ressalta-se, entretanto, que, apesar de não ter sido alterado o § 8º do artigo 144, este foi regulamentado na sequência, com a publicação da Lei nº 13.022/14, publicada em DOU de 11/08/14, que dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais e prevê, no artigo 5º, inciso VI: "São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais ... exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos da Lei nº. 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal". Com tal alteração, muda-se, drasticamente, o posicionamento do Sistema Nacional de Trânsito, sobre a impossibilidade de atuação das Guardas Municipais no trânsito (Parecer do Ministério das Cidades nº 1409/06), pois tal situação passou a ser regulada por lei.

    Veremos, a seguir, quais são as reais implicações desta mudança constitucional:
   
      A primeira repercussão foi a relevância dada, pelo texto constitucional, para a segurança viária, como questão a ser trabalhada de forma indissociável da Segurança pública, dever da Administração pública, em todos os níveis federativos (União, Estados e Municípios), direito e responsabilidade de todos.

      Tal destaque revela-se de maior importância, ainda mais se levarmos em conta que estamos em plena Década Mundial de Ações para a Segurança no Trânsito, proposta pela Organização das Nações Unidas, e ratificada pelo Brasil, para o período de 2011 a 2020.

    A compreensão sobre este aspecto permite, inclusive, a defesa mais contundente de um discurso que, há tempos, venho utilizando: a necessidade de participação social para o trânsito seguro, já que, diferentemente do previsto no § 2º do artigo 1º do Código de Trânsito Brasileiro, segundo o qual “o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos de trânsito...”; o artigo 144 da Constituição Federal (que agora abrange, taxativamente, a segurança viária), prescreve que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, ou seja, promover as condições seguras do trânsito não se trata apenas de um direito das pessoas, mas também de sua responsabilidade.

    O inciso I do novel § 10 contemplou o chamado “trinômio do trânsito”, que consiste nas três áreas de atuação essenciais dos órgãos competentes, para que se promova a segurança viária: Educação, Engenharia e Fiscalização (muito embora este último seja apenas um dos elementos de uma área muito mais abrangente, denominada de Esforço legal, e que engloba desde a atividade legislativa até a efetiva imposição de sanções aos administrados).

     Sobre o tema, recomendo a leitura do excelente texto jurídico “Trânsito Seguro: Direito Fundamental de Segunda Dimensão”, de autoria do amigo Dr. Cássio Mattos Honorato, Promotor de Justiça no Estado do Paraná (apresentado em Audiência Pública no Supremo Tribunal Federal, sobre a ADIn nº 4103, disponível em stf.jus.br). 

    O inciso II, por sua vez, falhou ao deixar de lado a menção aos órgãos e entidades da União, que igualmente fazem parte do Sistema Nacional de Trânsito (cuja composição encontra-se no artigo 7º do CTB); embora a Polícia Rodoviária Federal já conste do rol de órgãos de Segurança pública (inciso II do caput do artigo 144 da CF), o fato é que existem competências atribuídas ao órgão ou entidade executivo rodoviário (artigo 21 do CTB), diretamente ligadas à segurança viária, como a fiscalização em rodovias federais, exercida pelo DNIT – Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes e, subsidiariamente, pela ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres (nos termos da Resolução do Conselho Nacional de Trânsito nº 289/08).

    A repercussão positiva do inciso II reside no reconhecimento da carreira de agente de trânsito, que deverá ser estruturada em Lei específica, no âmbito de cada ente federativo; isto é, os Estados e Municípios deverão regular a carreira de seus agentes de trânsito, estabelecendo o respectivo plano, a projeção de cargos, o piso remuneratório etc, o que, por certo, trará maiores garantias trabalhistas e o reconhecimento profissional mais efetivo do servidor público incumbido das atividades de agente de trânsito.

    Neste aspecto, vale ressaltar a necessidade de que a contratação de agentes de trânsito seja feita tão somente por meio de concurso público, nos termos do artigo 37, inciso II, da Constituição Federal (“a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”); sendo totalmente irregular o simples credenciamento ou nomeação (muitas vezes por mera Portaria do órgão de trânsito ou Decreto do Poder Executivo), de servidores contratados para outras funções, o que caracteriza verdadeiro desvio de finalidade.

      Este é, aliás, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, esposado por meio da Súmula nº 685, nos seguintes termos: “É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido”.

    No mesmo sentido da explicação acima, destaco o Parecer do Ministério das Cidades nº 1206/06, que versa sobre a inafastabilidade do concurso público para agentes de trânsito (elidindo a possibilidade de contratação temporária).

    Entendo que estas são as duas únicas mudanças substanciais promovidas pela EC 82/14:

I)             a inclusão da Segurança viária como espécie do gênero Segurança pública; e
II)             o reconhecimento da carreira de agentes de trânsito.

    Qualquer outra assertiva sobre o impacto da EC 82/14, no ordenamento normativo brasileiro, trata-se de mera elucubração mental, desprovida de fundamento jurídico, ao que apontarei três comentários sobre os quais tenho recebido questionamentos:

1º) O impacto da EC 82/14 sobre a atividade desenvolvida pelas Polícias Militares.

   NÃO HAVERÁ qualquer mudança, concernente às competências das Polícias Militares, que são igualmente responsáveis pela Segurança pública, nos Estados e Distrito Federal, com a missão constitucional de polícia ostensiva e preservação da ordem pública (artigo 144, § 5º, da CF).

    O fato de se reconhecer a carreira dos agentes de trânsito, nos Estados e nos Municípios, não invalidará a atuação das Polícias Militares, na fiscalização de trânsito, que continua sendo concomitante ao trabalho dos agentes de trânsito próprios de cada órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário, nos termos de convênio firmado, como estabelece o artigo 23, III, do CTB.

    Importante destacar que a atividade de policiamento ostensivo de trânsito continua sendo de exclusividade das Polícias Militares, como conceitua o Anexo I do CTB: “função exercida pelas Polícias Militares com o objetivo de prevenir e reprimir atos relacionados com a segurança pública e de garantir obediência às normas relativas à segurança de trânsito, assegurando a livre circulação e evitando acidentes” e de acordo com o artigo 2º, item 27) do Decreto federal nº 88.777/83 (R-200) – Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, que assim dispõe: “Policiamento Ostensivo – Ação policial, exclusiva das Polícias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública....

    São tipos desse policiamento, a cargo das Polícias Militares ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, os seguintes: - ostensivo geral, urbano e rural; - de trânsito...”.

    É fato que, embora a nomenclatura “policiamento ostensivo de trânsito” seja utilizada, pela legislação infraconstitucional mencionada, como indicativo da função exercida pelas Polícias Militares, a inclusão do § 10 no artigo 144 passou a reconhecer a incidência do trabalho dos agentes de trânsito (estaduais e municipais) no campo da Segurança pública, especificamente para garantir o direito ao trânsito seguro; isto significa que a PM continua exercendo a prevenção criminal, por meio da sua ostensividade, e a repressão imediata dos crimes constatados (inclusive para os delitos ocorridos na utilização da via pública); por outro lado, não caberá aos agentes de trânsito invadirem a competência constitucional das Polícias Militares, não lhes cabendo ações próprias de polícia, como a busca pessoal ou veicular, à procura de armas e drogas (a qual tem como base o Código de Processo Penal, em seu artigo 244, quando fundada suspeita), ou a “perseguição” ou prisão a criminosos (ressalvada a possibilidade de qualquer um do povo prender quem esteja em situação de flagrante delito, nos termos do artigo 301 do CPP).

2º) A possibilidade de que agentes de trânsito portem armas de fogo

    A mudança do texto constitucional NÃO DÁ AUTOMATICAMENTE o direito de que agentes de trânsito portem armas de fogo, seja em serviço ou fora dele.

    Isto porque o porte de arma de fogo é regulado pela Lei nº 10.826/03 (conhecida como Estatuto do Desarmamento), cujo artigo 6º estabelece que “É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos e em legislação própria e para: ... II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal” (que são: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares); mesmo as Guardas municipais, criadas com base no § 8º do artigo 144 da CF, para proteção dos bens, serviços e instalações dos municípios, para que tenham direito ao porte de arma de fogo, dependerão dos requisitos constantes nos incisos III e IV, além do § 3º, do artigo 6º do Estatuto do Desarmamento, que fazem menção ao total de habitantes de cada município e à necessidade de treinamento específico.

    A única forma, diante da atual legislação, para que um agente de trânsito consiga a autorização para o porte de arma de fogo (de maneira dissimulada, e não exposta, como ocorre com os integrantes dos órgãos policiais, acima relacionados) será mediante a demonstração da efetiva necessidade, por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física, como prevê o artigo 10, § 1º, inciso I, da Lei sob comento.

    Esta é a normativa aplicada na atualidade, o que não significa, obviamente, que o reconhecimento da importância da segurança viária, bem como da carreira de agente de trânsito, não venha a acarretar alterações do Estatuto do Desarmamento, já que até mesmo integrantes das carreiras de Auditoria da Receita federal, Auditoria-fiscal do Trabalho, cargos de Auditor-Fiscal e Analista Tributário, foram contemplados com a possibilidade de porte funcional de arma de fogo (inclusão do inciso X ao artigo 6º do Estatuto, por meio da Lei nº 11.501/07).

    Aliás, existe uma grande possibilidade de que isso venha a ocorrer, já existindo até mesmo Projeto de Lei neste sentido: o PL nº 3.624/08, de autoria do Deputado federal Tadeu Filipelli (PMDB/DF) visa, justamente, incluir mais um inciso no artigo 6º do Estatuto, permitindo o porte arma de fogo aos “integrantes dos quadros de pessoal de fiscalização dos departamentos de trânsito”. Uma curiosidade: em 17/10/13, este PL teve voto desfavorável do relator Deputado federal Alexandre Leite (DEM/SP), da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, exatamente porque o artigo 144 não contemplava os agentes de trânsito como integrantes da Segurança pública; com a EC 82/14, tal situação pode ser revertida na tramitação do PL, disponível em camara.gov.br.

    Frise-se que, no Distrito Federal, o porte de arma de fogo por agentes de trânsito já é uma realidade desde 1.998, por conta da Lei distrital nº 2.176/98, questionada pelo Procurador-geral da República, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3996, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, desde 2007, cujo relator é o Ministro Luiz Fux (para acompanhamento processual).


3º) A concessão de poder de polícia aos agentes de trânsito

    A EC 82/14 NÃO CONCEDE poder de polícia aos agentes de trânsito, simplesmente porque ELES JÁ POSSUEM este poder, que é instrumental a toda a Administração pública, como forma de limitação dos direitos individuais, em prol do interesse coletivo, como se depreende da própria definição de fiscalização, constante do Anexo I do CTB, bem como das competências determinadas aos órgãos fiscalizadores do Sistema Nacional de Trânsito.

    Assim prevê o Anexo I: “FISCALIZAÇÃO - ato de controlar o cumprimento das normas estabelecidas na legislação de trânsito, por meio do poder de polícia administrativa de trânsito, no âmbito de circunscrição dos órgãos e entidades executivos de trânsito e de acordo com as competências definidas neste Código”.

    Aliás, diferentemente do que alguns imaginam, poder DE polícia não se confunde com poder DA Polícia; porquanto este é específico da Instituição policial, enquanto aquele é inerente a toda a Administração pública (o conceito legal, inclusive, encontra-se em legislação externa ao campo da Segurança pública, especificamente no artigo 78 do Código Tributário Nacional). Sobre o tema, recomendo a leitura da minha dissertação de Mestrado pela PUC/SP, intitulada “Poder de polícia administrativa de trânsito” (disponível para aquisição em www.eceat.com.br).


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